Trigo - Não é só por trigo que Argentina e Brasil brigam
Data:
13/02/2008
A decisão da Câmara de Comércio Exterior (Camex) autorizando a importação de uma cota de até um milhão de toneladas de países de fora do Mercosul, com tarifa zero, será uma espécie de carro chefe na reunião de Buenos Aires, a primeira do ano marcada para melhorar a relação entre Brasil e Argentina. Os representantes do Itamaraty discutirão com o secretário da Indústria argentino, os pontos espinhosos da agenda bilateral, desde a invasão dos produtos chineses no Mercosul, até problemas bem pontuais como a salvaguarda imposta por Buenos Aires contra televisores brasileiros produzidos na Zona Franca de Mannaus, além dos problemas do trigo, obviamente. A lista de queixas do lado brasileiro é significativa e foi construída sobre três pontos básicos: primeiro, a adoção, pela Argentina, de licenças não-automáticas de importação de fogões, geladeiras e máquinas de lavar "de origem brasileira"; depois, a questão dos televisores e por último, a aplicação de critérios desatualizados de valoração aduaneira sobre fios e tecidos de algodão de origem brasileira.
A pauta é extensa e o clima não é dos melhores entre os dois países principalmente porque a decisão da Camex sobre o trigo toca em pontos bastante sensíveis. A Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo) garante que o País precisará de uma cota mínima de 4 milhões toneladas para atender a demanda brasileira nesse momento de entressafra. Apesar da autorização de importação livre, o Brasil usará a reunião para requisitar da Argentina a regularização das exportações do produto. Os argentinos, por sua vez, devem pedir explicação às autoridades brasileiras sobre a decisão da Camex de incluir o trigo na lista de exceção à Tarifa Externa Comum (TEC).
O fato é que alguns setores do governo brasileiro temem que a Argentina, no momento, não tenha o trigo suficiente para manter os compromissos de abastecimento contratados com o Brasil. Nessa conta, a liberação de apenas um milhão de toneladas para importação sem taxas, será pequena e, provavelmente, novas autorizações serão necessárias até atingir as 4 milhões de toneladas previstas para atender a procura na entressafra. O problema é que o governo argentino reduziu as exportações para conter a inflação interna. Porém, com a medida, técnicos do Ministério da Fazenda já estimam repercussões na inflação brasileira pela alta no preço da farinha.
Por outro lado, há o "fator China" como foco permanente de tensão nas relações bilaterais Brasil/Argentina. Nesse aspecto, há uma séria diferença qualitativa no perifl do comércio chinês entre os diversos países do bloco Mercosul. Quando os argentinos fecham as portas para as geladeiras ou televisores brasileiros, os asiáticos aproveitam para avançar nesse mercado. Porém, o comércio da China com o Brasil tem outro perfil. O saldo comercial entre os dois países foi negativo em US$ 1,8 bilhão no ano passado, e diferentes analistas prevêem que esse déficit poderá aumentar muito em 2008, já que apenas em janeiro o saldo negativo para o Brasil nessa corrente de comércio foi de US$ 882 milhões.
É preciso observar, no entanto, que dos US$ 12 bilhões importados da China no ano passado, 37% desse valor foi composto por bens de capital, enquanto nesse mesmo período, o Brasil comprou dos chineses só US$ 1,7 bilhão, em bens de consumo duráveis. Em outras palavras, o déficit está composto pela compra de máquina e dos equipamentos chineses que dão maior competitividade ao manufaturado brasileiro, inclusive para competir no mercado argentino. Bem ao contrário, na Argentina, o produto chinês apenas mina o "espírito do Mercosul" ao prejudicar o sadio comércio bilateral entre os dois vizinhos.
Os riscos de um desentendimento maior entre Brasil e Argentina não são convenientes, em especial, no momento em que os Estados Unidos e a Europa, por razões diferentes, apresentam novas versões para as negociações da Rodada Doha. A proposta do corte de subsídios agrícolas nos EUA entre US$ 13 bilhões e US$ 16 bilhões, ao lado da redução de 66% a 73% nas tarifas protecionistas dos produtos agrícolas europeus, devem provocar um crescimento das pressões para que o corte das tarifas industriais nos emergentes (aí incluídos Brasil e Argentina) caiam nos padrões médios dos atuais 29% para cerca de 13%. Esse fato, terá enormes repercussões nos parques industriais dos dois países.
Porém, Buenos Aires sabe que o preparo para essa inevitável situação é bem menor por parte da indústria argentina do que da congênere brasileira. Os conflitos, pequenos ou grandes no comércio bilateral com o Brasil têm esse pano de fundo. Os diplomatas e os empresários brasileiros não podem perder esse cenário de vista quando negociam com o vizinho.